Você não é pago para isso!

Nesse artigo, Tom Coelho conta um pouco sobre como a falta de reconhecimento encerrou sua carreira como executivo.

Convido você a uma viagem ao passado. Aportamos precisamente no dia 14 de outubro de 1992. Nessa data, estou gerente de filial de uma empresa de exportação de café. Minhas atribuições incluem comprar lotes de café cru em grão junto aos produtores, tendo corretores como intermediários; receber os lotes adquiridos; conferi-los, confrontando a qualidade do produto entregue com a amostra oferecida pelo vendedor; processá-los, utilizando os serviços de empresas de armazéns gerais, onde o café é tratado mecânica e eletronicamente, separando os chamados “defeitos”, ou seja, grãos pretos, verdes e quebrados, além de pedaços de pau, pedra e outras impurezas, dos grãos de boa qualidade; ensacar o café beneficiado e, finalmente, transportá-lo até o porto para ser embarcado ao seu destino final. Além de tudo isso, gerenciar, evidentemente, as rotinas administrativas e financeiras da filial, com uma equipe formada por apenas quatro pessoas.

A empresa em que estou tem sua matriz sediada em Salvador. Optaram pela abertura de uma filial em Varginha, sul de Minas – tempos depois conhecida por supostamente oferecer hospitalidade a extraterrestres, alienígenas e simpatizantes – porque o café baiano estava deixando a desejar. O produtor local, sem incentivo de qualquer ordem, cuidava mal da lavoura, fazendo colheitas cada vez menos produtivas. E exportar para países como Itália, Alemanha e EUA demandava grãos mais nobres, disponíveis apenas no eixo MG-SP. Por conta dessa necessidade, nasceu a filial sul-mineira, no maior centro de comercialização de café do mundo.

Ocorre que sofríamos seguidamente de duas mazelas autoimpostas em nossas exportações, que sempre atrasavam. Primeiro, por força de uma cultura tipicamente tupiniquim, a matriz nos informava dos embarques, concedendo autorização para compra da matéria-prima, sempre na última hora. Segundo, por puro regionalismo, a diretoria exigia que o café processado fosse embarcado pelo porto de Salvador, distante cerca de 1.700 km, cujo acesso compreendia estradas esburacadas vencidas ao longo de dois dias de viagem, em vez de optar pelo chamado “porto seco”, que permitia embarcar a mercadoria diretamente de Varginha, já em contêineres, prontos para saírem pelo Porto de Santos, distante apenas 400 km, com estradas bastante razoáveis num trajeto de oito horas.

Além dos atrasos, trabalhávamos sob constante pressão. Os custos de preparação eram elevadíssimos, pois, como tudo era feito às pressas, pagávamos mais caro pela matéria-prima para recebê-la mais rapidamente, custeávamos horas extras para beneficiamento nos armazéns gerais e, finalmente, tínhamos que pagar ágio aos caminhoneiros para chegarem em tempo ao porto de Salvador. Em suma, uma coleção de desperdícios.

Em setembro daquele ano, nosso maior importador enviou uma carta à matriz comunicando que, se mais um lote fosse embarcado com atraso, todos os contratos firmados seriam cancelados. Pela primeira vez houve planejamento, de modo que recebemos, na segunda semana de outubro, uma planilha contendo todos os embarques do mês, totalizando 11.850 sacas.

Um “baiano maluco” no sul de Minas

De posse da planilha de embarques, projetei as necessidades de matéria-prima. Em poucas palavras: para obter um lote de 1.000 sacas de café tipo exportação, precisávamos comprar entre 1.100 e 1.200 sacas de café de produtor, pois a diferença, denominada “quebra”, representa os chamados “defeitos”, já mencionados anteriormente (e que serão destinados ao mercado interno). Como a “quebra” média do padrão de café que adquiríamos era da ordem de 15%, nossa meta de matéria-prima compreendia cerca de 14.000 sacas.

Ao meio-dia daquele 14 de outubro, uma quarta-feira, recebi autorização para “entrar no mercado” comprando com média de preços de $70,00/saca. Não me foi estipulada uma quantidade para compra. A instrução da matriz foi: “Vá comprando. Você sabe o quanto temos que embarcar”.

Ocorre que eu acompanhava, junto a um colega economista baseado no interior de São Paulo, os movimentos das Bolsas de Londres e Nova Iorque, cujas oscilações têm impacto significativo na cotação dos preços internos. As tendências por nós analisadas indicavam para uma forte elevação dos preços na terça-feira seguinte, dia 20, por ser data de vencimento dos contratos de opções. Nossa estimativa era de que os preços atingiriam o patamar de $120,00/saca.

Diante de todos os fatos e dados, mergulhei no mercado. Assim, naquele dia, comprei exatas 14.000 sacas a um preço médio unitário de $70,00. Num dia atípico, onde nenhum dos outros 21 exportadores sediados em Varginha resolveu atuar, reinei sozinho. Impus a entrega imediata dos lotes comprados (os produtores tinham, por convenção, até sete dias para entregar). Exigi condições diferenciadas de pagamento, variando de sete a 28 dias de prazo (o prazo padrão também era de uma semana), de modo a não estrangular o fluxo de caixa da empresa.

Ao final do dia, correu a notícia que foi bater em Rondônia: “Tem um baiano maluco em Varginha que ‘varreu’ o mercado. E pagando caro”. A informação logo chegou aos meus ouvidos, profetizada por meu supervisor na matriz: “Você terá problemas”.

O herege

A quinta-feira, dia 15, amanheceu fria e nebulosa. O diretor financeiro telefonou-me logo cedo. Sujeito ponderado, que sempre nutrira respeito por meu trabalho, pediu-me que esclarecesse o que havia ocorrido. Ouviu-me pacientemente explicar-lhe sobre as necessidades de compras para cumprir os embarques, sobre os prazos de pagamento diferenciados, sobre a média de preços respeitada. Até que proferi minha maior heresia ao apresentar-lhe a teoria de que os preços iriam disparar dali a cinco dias. Foi nesse momento que, talvez ofendido pela ousadia, desferiu-me o golpe certeiro: “Você não é pago para fazer esse tipo de análise”.

A sexta-feira transcorreu inerte. O mercado, parado. Os preços, em queda. Os produtores, entregando a mercadoria conforme o combinado. Aproveitei para negociar com os armazéns gerais. Para aquele lote, nada de custo extra. Eles trabalhariam em três turnos, pelo preço normal. Entrei em acordo também com a transportadora. Haveria carga para 26 carretas com destino a Salvador. Nada de ágio e, ao contrário, frete reduzido.

Trabalhamos por todo o final de semana. O mercado abriu na segunda-feira como terminara na sexta: estático. Eu era alvo de chacotas, pelo elevado preço pago e por não ter percebido que estava sozinho no mercado naquele dia. Na matriz, ninguém desferia uma única palavra.

Até que raiou, resplandecente, o sol do dia 20, terça-feira. E, como previsto, a Bolsa de Londres, ao abrir o pregão, registrou imediatamente uma alta de 625 pontos. A notícia cruzou o oceano e foi dar na Cooperativa de São Sebastião do Paraíso, que colocou seu primeiro lote à venda, já perto do meio-dia, ao preço de $125,00/saca.

O mercado trabalhou nervoso naquele dia 20, com todas as empresas ativas no mercado, exceto uma... Eu assistia de camarote às oscilações das bolsas e ao desespero dos demais compradores para cumprir suas metas com o menor custo possível. O dia terminou com lotes negociados a até $140,00/saca.

No meio da tarde, coloquei propositadamente à venda um dos lotes adquiridos por $70,00. Recebi oferta de $130,00 para pagamento com dois dias, para 1.000 sacas. Em outras palavras, estávamos diante de um ganho bruto de $60.000,00, para recebimento praticamente à vista, casando com os primeiros pagamentos que seriam efetuados referentes às compras da semana anterior. Consultei ardilosamente o diretor financeiro. Evidentemente não autorizaram a venda, pois se a fizessem, realizariam o lucro naquele momento, mas não teriam como cumprir com os embarques posteriormente.

Resumo da ópera: todos os embarques foram realizados pontualmente. O custo de serviços de armazéns caiu de US$2,86/saca para US$1,38/saca, ou seja, redução de 52%. Os fretes foram igualmente reduzidos em 30%. Nosso prêmio? Eu e minha equipe, que percebíamos uma remuneração variável, fomos alijados de qualquer rendimento oriundo das famigeradas 14.000 sacas. O presidente da empresa justificou-me ao telefone: “Não podemos premiar um erro”.

Em que pese o fato de eu ter realizado, em apenas dez meses, o embarque de mais de 80.000 sacas de café, elevando a empresa da 45ª para a 21ª posição no ranking da Federação Brasileira dos Exportadores de Café (Febec), respondendo por 67% das exportações da empresa, a falta de reconhecimento encerrou minha carreira como executivo apenas 36 dias depois, em 11 de dezembro de 1992.

Nunca mais voltei a ser empregado em qualquer empresa.

Tom Coelho é educador, conferencista e escritor com artigos publicados em 17 países.

Paula Martins 16-09-2013 Artigos

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